O clima de crescente tensão pelo avanço da pandemia criou o ambiente propício para que políticos e especialistas de plantão tirassem da cartola velhas receitas ideológicas para combater o novo coronavírus. Essa é a natureza da proposta para que a burocracia estatal crie uma “fila única” de pacientes vítimas da covid-19 e se encarregue de decidir como serão ocupados os leitos de UTI. Não apenas os leitos dos hospitais públicos, mas também dos privados. A proposta tem o apelo fácil das panaceias, que oferecem soluções mágicas para questões complexas. No mundo real, a gestão compulsória dos leitos não teria o condão de resolver de fato o problema da escassez de leitos que deverá afetar tanto hospitais públicos como privados. Mas ela teria, sim, o poder de levar o caos a todo o sistema privado de saúde, responsável por atender ao SUS e a uma clientela de 47 milhões de brasileiros que pagam mensalmente pelo direito a este serviço.
O ponto de partida para analisar a situação é o fato de que o sistema brasileiro de saúde, como um todo, incluindo os hospitais públicos e privados, não está preparado para atender a uma demanda tão grande e tão concentrada de pacientes da covid 19, cujo tratamento exige longos períodos de internação. É sempre bom relembrar que, no Brasil, o total descaso histórico com a rede privada de hospitais, contribuiu para a perda, desde 2010, de mais de 34 mil leitos, 11 mil deles só no Rio de Janeiro. Desses hospitais privados que faliram, 50% atendiam ao SUS e hoje mais de 57% ainda atendem.
Na verdade, a triste constatação de que nenhum sistema estava preparado para enfrentar a covid-19 foi feita, sem exceção, por todas as nações que nos precederam no enfrentamento da pandemia. Mesmo as mais ricas e desenvolvidas se depararam com a insuficiência de leitos e falta de respiradores.
Essa é também a nossa situação em algumas localidades e ela coloca diante de nós uma pergunta objetiva: como ampliar o número de leitos? Repetindo e ampliando o que muitos governos, nas diversas esferas, já estão fazendo: construindo hospitais de campanha (com o apoio da iniciativa privada), reativando hospitais e milhares de leitos públicos ou filantrópicos que foram desativados nos últimos anos (igualmente com o apoio privado), contratando leitos do setor privado, onde haja leitos disponíveis. Esse é o caminho para resolver o problema dentro dos parâmetros legais e técnicos.
Organizar uma fila única não aumentará o número de leitos disponíveis para a população e mesmo como solução provisória não traz resultados efetivos. Quem quiser uma opinião científica sobre isso pode ler artigo recente de um grupo de pesquisadores das universidades de Harvard, da Federal de Minas Gerais e do Ministério da Saúde intitulado “Demanda de serviços hospitalares por pacientes da covid-19 no Brasil (“Demand for Hospitalization Services for covid-19 Patients in Brazil”). Com base em dados públicos e modelos estatísticos de análise de sistemas de saúde, o estudo conclui que colocar temporariamente os leitos da rede privada sob a administração do Estado teria como resultado adiar por apenas uma semana o colapso do sistema, a exemplo do que já está ocorrendo no Pará e no Amazonas, onde não há mais leitos públicos ou privados disponíveis. A solução, de acordo com os pesquisadores, não é outra senão criar novos leitos.
Se os benefícios da fila única não são efetivos, os efeitos negativos são certos. A intervenção do Estado teria como consequência a desorganização de toda a rede privada de atendimento, justamente no momento mais crítico de atendimento aos milhares de clientes do SUS e de planos de saúde, vítimas da covid-19. Além disso, uma intervenção dessa natureza desencadearia uma disputa judicial pelos leitos e pelo direito ao tratamento, pois desrespeitaria contratos assinados pelos hospitais, não só com planos de saúde mas com outros entes federativos, como prefeituras que também são atendidas por esses hospitais. A insegurança jurídica criada pela intervenção levaria à provável fuga de grande parte do capital investidor no setor de saúde, paralisaria planos de investimento imediato na abertura de novos leitos ou na aquisição de equipamentos e, por fim, estabeleceria a descrença da população no funcionamento dos planos de saúde.
Em resumo, não faz sentido buscar uma solução para a crise de saúde recorrendo a medidas de força. A iniciativa privada é uma aliada fundamental nesta hora. Em lugar de fragilizá-la, o melhor é encontrar caminhos para fortalecer a aliança do setor público com o setor privado, mobilizar as suas forças em favor da saúde, com a ampliação efetiva de leitos. Por isso, a proposta da CNSaúde e de outras entidades do setor é que se estabeleça um plano de reativação dos milhares de leitos públicos e filantrópicos no país (como já está ocorrendo, em parte, em São Paulo e no Rio de Janeiro), que se construa dezenas de novos hospitais de campanha e que se amplie a contratualização de leitos privados disponíveis para ajudar o setor público, como estão fazendo o Rio de Janeiro, o Distrito Federal e Pernambuco.
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